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Os precedentes na prática forense no Brasil possuem papel fundamental no auxílio para a tomada de decisões pelos tribunais, embora o direito brasileiro embrionário possua como fonte relevante a norma, num determinismo mecanicista. Foi tão somente com o passar dos anos que se institucionalizaram entendimentos, e pacificaram os precedentes.
A ciência jurídica não é — e tampouco deveria ser — estancada apenas no direito positivo, e é nessa perspectiva que o sistema judiciário brasileiro evoluiu de modo que hipóteses normativas absolutas puderam ser compreendidas como insuficientes. O legislador está incumbido de editar leis. Aos juristas cabe a função de racionalizá-las e aplicá-las ao caso concreto, mediante profundos estudos sociais, políticos, econômicos e processuais, de modo que se empreguem as normas precisamente adaptadas às circunstâncias adequadas.
Por meio desse exercício, entendimentos jurisprudenciais são criados; alguns são cristalizados; outros, superados, sempre na intenção de se alcançar a solução ideal. A contínua invocação de precedentes é impulsionada pela garantia de segurança ao ordenamento jurídico, de modo que decisões contrárias não se apliquem a casos semelhantes, visando os princípios de igualdade e universalidade.
Tradicionalmente, a pretensão de buscar-se na lei, que é norma abstrata, a expressão concreta do Direito, dá liberdade para que magistrados a interpretem de acordo com seu convencimento, cabendo recurso aos tribunais. Contudo, a realidade que se vê é de que a livre convicção dos juízes, na verdade, é restrita na prática jurídica. A implantação de enunciados de súmulas, principalmente, vinculantes, já demonstra que a lei, apenas, já não importa todo o seu poder de guiar as decisões, e a impossibilidade de conhecimento de recurso em desconformidade com a jurisprudência é um claro exemplo disso.
À luz da Teoria Crítica, seria a hipótese de os juízes examinarem os casos a partir de uma perspectiva externa, imprimindo-lhes todas as potencialidades e apontando todos os obstáculos. Sob essa ótica, exaurir os fundamentos decisionais, apresentando o remate de argumentos que o justifiquem, permitiria uma constante atualização e renovação dos precedentes, de modo que o momento histórico presente estivesse constantemente em foco, havendo, pois, a possibilidade de superar-se a qualquer momento, precedente já ultrapassado ou que a convicção do julgador obstasse a sua aplicação.
Desde a primeira Constituição Brasileira, outorgada em 1824, o Brasil encontra suas leis pautadas em instrumentos normativos positivados. As marcas fundamentais desse sistema, conforme dita Fiuza (2010), são a primazia do direito escrito sobre o direito oral, a técnica de codificação, e as fontes do Direito. Assim, desde o primeiro momento, verifica-se estar diante de uma forte cultura solidificada, na qual juristas estão interligados por meio de códigos.
Segundo Ferraz Júnior (2010), essa tradição romanística traz como principal fonte do Direito a lei, codificada. Ele cita Justiniano, que repudiava decisões conforme o precedente. Por outro lado, reconhece que o papel da jurisprudência romana foi essencial na concretização do Direito de hoje:
Já a tradição romanística, própria dos povos do continente europeu, e que passou para o Brasil, é distinta. Encontramos desde Justiniano uma expressa proibição de se decidir conforme o precedente (“non exemplis, sed bus judicandum est” – Codex, 7, 45, 13). E, nas grandes codificações que ocorreram na Era Moderna, repetiram-se preceitos semelhantes (por exemplo, o Código Prussiano — Allgemeines Landrecht — de 1794). Assim, ao contrário do sistema anglo-saxônico, em que, desde os primórdios, reconhecia-se que o juiz podia julgar conforme a equity mesmo em oposição ao common law (o direito costumeiro, comum a toda a Inglaterra), no Continente as decisões deviam ser subordinadas à lei de modo geral (FERRAZ JÚNIOR, 2012, p. 210).
Sobre a importância da jurisprudência no direito romano, deve-se salientar a opinião de Bustamante (2012). Ao contrário do que se prega pela “recepção expressa” do direito romano nas tradições francesa, italiana e germânica, ele acredita que existem exímias semelhanças entre as tradições da antiga Roma e da Inglaterra contemporânea. Segundo o autor, o common law, ou sistema romano-germânico, possui como características básicas a ausência de codificação do sistema jurídico e a exaltação da tradição, essa que está intrinsecamente ligada ao conceito de precedente, do qual trataria Camargo (2003) como Jurisprudência dos Interesses:
De tal forma, a Jurisprudência dos Interesses nega-se a confiar ao juiz a mera função do conhecimento e subsunção entre a lei e o fato, propugnando a adequação da decisão às necessidades práticas da vida, mediante os Interesses em pauta. Os comandos legais, escreve Philipp Heck, não só se destinam a resolver conflitos de interesses, mas são também, como todos os comandos ativos, verdadeiros produtos dos interesses. Assim também as leis apresentam-se como resultante dos interesses materiais, nacionais, religiosos e éticos, em luta pelo predomínio de uns sobre os outros (CAMARGO, 2003, p. 93).
A esse respeito, pondera Bustamante (2012):
O Direito há de ser buscado em um precedente que tenha resolvido um caso semelhante em termos relevantes ao que se coloca para o intérprete; há de ser normalmente encontrado em uma regra estabelecida pelo juiz em um caso particular anterior, e não em uma máxima abstrata da qual possam ser deduzidas regras mais específicas para cada nova situação (BUSTAMANTE, 2012, p. 04).
E conclui, afinal, seu entendimento sobre a grande aproximação que tem o direito romano ao sistema jurídico anglo-saxão:
O caráter extremamente concreto e casuístico das responsa prudentium oferecidas pelos jurisconsultos romanos dos dois primeiros séculos da era cristã (bem como a suposta “repulsa” do jurista romano por construções abstratas ou por qualquer tipo de pensamento sistemático ou conceitual como o que predominou no Continente Europei pós-Revolução Francesa) faz com que os comparativistas encontrem uma impressionante similitude entre o Direito dos juristas de Roma e dos juízes da Inglaterra, pois em ambos os casos predominaria um modo de pensamento tópico: ao invés de procurar — dedutivamente — a resposta para cada problema jurídico em um sistema de regras prévias estabelecidas pelo legislador, o juiz do common law e o jurista romano parecem recorrer a um sistema de topo que podem ser livremente empregados pelo aplicador do Direito: no common law, os precedentes; em Roma, as responsa dos juristas autorizados (BUSTAMANTE, 2012, p. 06).
Nesse passo, verificada a tradição como elemento essencial de construção de sentido jurídico, tem-se a motivação do legislador na criação das leis, e do intérprete, na sua decodificação. Assim, pela teoria da argumentação jurídica de Alexy (2001), a administração pura das leis é inviável se não acompanhada de um juízo de cognição e ato de discricionariedade dos juízes:
O caráter racional da aplicação da dogmática jurídica, naturalmente, é virado de cabeça para baixo assim que não é mais usado como um ‘instrumento para determinação do direito em questões de razão prática ou moralidade’. Esse é particularmente o caso quando dogmáticas jurídicas são usadas para ocultar as verdadeiras razões de uma decisão ou para prover programas autônomos para a tomada de decisões. É indiscutível que essa má aplicação do argumento da dogmática jurídica é possível. A medida em que ocorre é uma questão para investigação empírica. Que isso aconteça não é nada notável. Justificação ilusória e pedidos de perguntas (petitio principii) ocorrem em geral na argumentação prática também. O ponto de interesse atual é que é tão justo quanto possível que a argumentação dogmática seja racional quanto a ser enganadora (ALEXY, 2001, p. 257).
A teoria do precedente judicial caminha de mãos dadas com a teoria de Alexy (2001, p. 257), em especial, no sentido adotado por Bustamante (2012, p. 126), como uma das teorias válidas do Direito, a de que se trata de uma “prática social de natureza hermenêutica, pois a concretização de seus comandos depende sempre de uma atividade de interpretação (em sentido amplo)”.
E é exatamente nesse ponto, que se faz essencial também, o entendimento da Teoria Crítica de Adorno (2009), que defende que:
não pode admitir alternativa entre colocar a questão, a partir de fora, a cultura como um todo, submetida ao conceito supremo de ideologia, ou confrontá-la com as normas que ela mesma cristalizou (ADORNO, 2009, p. 57).
A crítica ao cientificismo, paradigma da atualidade, que é pautado por um conhecimento metodológico e utilitarista — como reflexo do Iluminismo — pressupõe o comportamento social previsível e manipulável, como conclui Ortiz (1986):
a possibilidade de controle se vincula à capacidade que o sistema possui de eliminar as diferenças, reduzindo-as ao mesmo denominador comum, o que garantiria a previsibilidade das manifestações sociais (ORTIZ, 1986, p. 06).
A esse mesmo respeito, Habermas (1987) afirma que:
A racionalização progressiva da sociedade depende da institucionalização do progresso científico e técnico. Na medida em que a técnica e a ciência pervadem as esferas institucionais da sociedade e transformam assim as próprias instituições, desmoronam-se as antigas legitimações (HABERMAS, 1987, p. 45).
Tem-se, portanto, que as reiteradas decisões sobre uma mesma temática, que criam a jurisprudência e orientam a aplicação do Direito, não são arbitrárias. O costume foi tratado como fonte do Direito, na concepção de Ferraz Júnior (2012, p. 206) sob o argumento de que “algo deve ser feito, e deve sê-lo porque sempre o foi”. É nesse mesmo caminho que segue a dominação tradicional de Weber, na qual, ainda segundo Ferraz Júnior, as normas consuetudinárias são tratadas como fontes doutrinárias institucionalizadas.
Marx, como precursor da Teoria Crítica propõe, assim, que se compreenda o sistema capitalista como um todo, em sua maior profundidade, para que, só então, seja plausível superá-lo, buscando nas suas deficiências os elementos necessários que alcançarão o desejado, e a possibilidade de um sistema novo — quer seja o socialismo — de solucionar os entraves do velho.
A Teoria Crítica proposta, caminha no sentido da emancipação da dominação capitalista, sendo o chamado de “utópico”, na realidade, um “ideal” a ser pretendido, uma chance real que, se não pensada, torna-se inalcançável. Essa teoria, então, leva em consideração além das estruturas reais que compõem a sociedade em determinado momento, o seu máximo potencial de emancipação de tudo aquilo que impede a perfeição.
Já existem na doutrina dois institutos que devem ser comentados: o distinguishing e o overruling.
O primeiro relaciona-se às particularidades do caso em julgamento. Nele, verifica-se que a jurisprudência não abarca determinadas peculiaridades e, por isso, não é adequada. Valendo-se de vários métodos de interpretação, deve o magistrado buscar uma solução razoável para o caso concreto, ainda que díspar dos precedentes já solidificados.
O segundo se trata de uma atualização jurisprudencial, de modo a se adequar às necessidades do momento atual: quando os precedentes existentes já não se adaptam à conveniência e, por essa razão, devem ser revistos.
O pensamento crítico de Marx e Engels (2008), que propõe abolição de limites e desconstrução de postulados anteriores, entende a representação social humana como fundamental na construção do ser, ao afirmar que “não é a consciência dos homens que determina o ser, ao contrário: seu ser social determina sua consciência”.
Uma vez que, segundo sua fantasia, as relações entre os homens, toda a sua atividade, seus grilhões e barreiras são produtos de sua consciência, os jovens-hegelianos, consequentemente, propõem aos homens o seu postulado moral de trocar sua consciência atual pela consciência humana, crítica ou egoísta e de, por meio disso, remover suas barreiras (MARX; ENGELS, 1845-1846, p. 84).
Habermas (1987) caminha nessa mesma perspectiva, em que o meio social é grande influenciador no modo de pensar dos homens:
Os estudantes activos têm antes pais que partilham as suas atitudes críticas; com relativa frequência, cresceram num clima de maior compreensão psicológica e de princípios educativos mais liberais do que os grupos de controlo não activos (HABERMAS, 1987, p. 91).
Muito se aproxima, ainda, essa perspectiva crítica frankfurtiniana, da desconstrução derridiana, na qual o Direito, como ciência interpretativa, é transformável:
Na estrutura que assim descrevo, o direito é essencialmente desconstruível, ou porque ele é fundado, isto é, construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis (e esta é a história do direito, a possível e necessária transformação, por vezes a melhora do direito), ou porque seu fundamento ultimo, por definição, não é fundado. Que o direito seja desconstuível, não é uma infelicidade. Pode-se mesmo encontrar nisso a chance política de todo progresso histórico” (DERRIDA, 2010, p. 26).
Essa possibilidade de transformação encontra lugar na Teoria de Kelsen quando o autor trata do sistema jurídico dinâmico, que tem como objeto o Direito em movimento, sendo produzido e aplicado. No entanto, Kelsen (2006, p. 80) admite apenas uma transformação que se paute em normas preordenadas jurídicas gerais, “a saber àquelas normas que regulam a produção e a aplicação do Direito”.
É de suma importância salientar que a Teoria Crítica, diferentemente da Teoria Pura do Direito, não pode nem deve ser condensada num arcabouço de teses, principalmente, levando-se em consideração que a verdade é temporal e histórica e, jamais imutável, para que se molde às necessidades de cada época. Ser crítico, na visão de Horkheimer, é estar em constante mutação, com o qual concorda Nobre (2013):
O que distingue a perspectiva crítica é justamente o seu ancoramento real na sociedade, um ancoramento intimamente relacionado com a produção de diagnósticos no tempo, É uma característica marcante da Teoria Crítica a sua permanente renovação, a sua permanente capacidade de analisar o momento histórico presente. Neste sentido, quem quer que continue a repetir hoje como a verdade inabalável o diagnóstico de Marx, por exemplo, deixa de ser crítico, pois o essencial é que se seja capaz de produzir novos diagnósticos do tempo da perspectiva teórica e prática inaugural de Marx. Repetir como verdade o que Marx ou qualquer outro teórico crítico do passado afirmaram é cair no dogmatismo que a Teoria Crítica busca a todo custo evitar (NOBRE, 2013, p.18).
Dito isso, cumpre ressaltar que a invocação dos precedentes judiciais, na expectativa de reaplicação diante de um novo caso concreto, não pode ser aleatória e automática. O intérprete autêntico, quer seja o aplicador do Direito, aquele cujo trabalho interfere no recheio do arcabouço normativo dos precedentes, possui ao seu dispor, os elementos trazidos pela Teoria Crítica para que engrandeça as decisões judiciais, com o desígnio de se alcançar a justiça.
A sociedade é mutável. Diante de um contexto tecnológico, investigativo, no qual as informações são acessadas com grande agilidade e facilidade, valores, cultura, fetichismo e educação sofrem variações várias que devem ser observadas pelo Direito.
Nesse sentido, a Teoria Crítica, aplicada corretamente, confere os mecanismos necessários para o aprimoramento dos precedentes e aplicação à norma de modo mais coerente com a situação fática. O caso assume contornos principiológicos e normativos, que devem ser levados em consideração pelo julgador e também pelas partes, de forma a criar e expandir o leque de discussões sobre o assunto.
Não se trata aqui de definir qual o melhor método a ser aplicado nas decisões. Trata-se de buscar a melhor solução para os casos apresentados ao Judiciário. Novamente, partindo da Teoria Crítica, a constante procura do ideal social deve ser a base das decisões judiciais.
Conclui-se, portanto, que a tarefa interpretativa exige esforços constantes para que se busque a segurança jurídica, mas que se evite a aplicação mecanicista. O Direito está em constante mutação, porque acompanha uma sociedade que também está. Estancar entendimentos sem renová-los periodicamente é um atraso doutrinário. Precedentes existem para que se solidifique uma história que deve ser combatida a fim de evitar a dominação. Devem ser invocados para ser desconstruídos e superados no esforço de se fazer Justiça.
C//SUITE, edição 17 completa, por: Helena De Marco, Coordenadora Nacional de Novos Negócios NWGroup, pós-graduada em Direito do Trabalho pela PUC e MBA em gestão tributária pela ESALQ-USP em curso.
REFERÊNCIAS:
ADORNO, T. Indústria Cultural e Sociedade. Tradução de Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. / ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild da Silva. São Paulo: Mandamentos, 2001. Disponível em <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.jfpb.jus.br/arquivos/biblioteca/e-books/AlexyTeoria.pdf> Acesso em 30 ago. 2024. / BUSTAMANTE, T. R. Teoria do Precedente Judicial: A Justificação e a Aplicação de Regras Jurisprudenciais. 1. ed. São Paulo: Noeses, 2012./ CAMARGO, M. M. L. Hermenêutica e Argumentação: Uma Contribuição ao Estudo do Direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. / DERRIDA, Jacques. Força de Lei. Tradução de Leyla Perrone Moisés. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. / FERRAZ JÚNIOR, T. S. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas S. A., 2012. / FIUZA, C. Direito Civil: Curso Completo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. / HABERMAS, J. Técnica e Ciência como “Ideologia”. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1987. / KELSEN, H. Teoria Pura do Direito. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. / MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008. / MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã: Crítica da Mais Recente Filosofia Alemã em seus Representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do Socialismo Alemão em seus Diferentes Profetas. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo Editorial, 1845-1846. / NOBRE, M. Curso Livre de Teoria Crítica: Modelos de Teoria Crítica. Campinas/SP: Papirus Editora, 2013. / ORTIZ, Renato. A Escola de Frankfurt e a Questão da Cultura. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 1, n. 1. São Paulo, 1986. Disponível em <https://redelp.net/index.php/rsr/article/download/1177/1110 > Acesso em 30 ago. 2024.